segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

 

A Perda Total


No mesmo dia em que passou à reserva, já em 1990, o sargento ajudante Simões pegou nas economias da sua vida e comprou um carro novo: um Fiat Uno 60 SL azul escuro, lindo de morrer.
Mais de catorze anos depois o carro ainda parecia saído do stand. Para já, porque tinha ainda somente 39.000 quilómetros e não tinha passado uma única hora estacionado sem a cobertura de oleado cinzenta. Depois, porque impreterivelmente todos os sábados, o Sr. Simões o lavava, encerava e aspirava. De 6 em 6 meses, mudava-lhe ele próprio o óleo e o filtro.
É bem certo que a sua reforma de pouco mais de 140 contos não lhe permitia comprar mais nenhum: mas aquele carro era o seu orgulho e já fazia parte da família.

Até que um dia, o sargento ajudante Simões saiu com a mulher, os dois em fato domingueiro muito orgulhosos no seu carro imaculadamente limpo, aquele motor a ronronar como um gatinho, para dar uma vista de olhos ao novo centro comercial em Alcochete.
Qual quê! Mal tinham andado umas centenas de metros, estavam eles parados num semáforo, entrou-lhes um safado pela traseira!
O sargento ajudante Simões não conseguiu esconder uma lágrima quando viu o seu querido carro afastar-se, empoleirado no reboque, a caminho da oficina.

O perito da Companhia de Seguros foi implacável.
A reparação estava orçamentada em 300 contos. Mas como o valor comercial do carro não passava os 150 contos, o veredicto só podia ser um: perda total!

Então e agora?
- Agora é assim: a Companhia de Seguros só se responsabiliza por 150 contos e avalia o salvado em 50 contos.
Até lhe doeu o coração ao ouvir chamar «salvado» ao seu carro.
Se o Sr. Simões quiser, fica com o salvado e recebe 100 contos da Companhia. Pode então mandar arranjar o carro e paga a diferença dos 200 contos do seu bolso.
Se não quiser, a Companhia fica com o salvado e dá-lhe os 150 contos.
É assim!

- Mas ó senhor perito: eu é que levei com o sujeito pela traseira e eu é que tenho de pagar os 200 contos do meu bolso? Onde é que eu tenho os 200 contos?
- Então, se não quiser, a Companhia fica-lhe com o salvado e dá-lhe os 150 contos que é o valor comercial do carro.
- Ai é? Eu é que estou parado no semáforo, e eu é que fico sem o carro? Onde é que eu vou arranjar outro carro igual pelos 150 contos que me quer dar? E quem disse que o meu carro só vale 150 contos? Nem 40.000 quilómetros tem! Acha que os carros são todos iguais?
- Meu caro amigo: é o que está aqui na revista, veja.

Nessa noite, desabafou com o cunhado:
- Eu processo mas é aqueles gajos! Arranjo um advogado e espeto com aqueles gatunos em tribunal!
Mais vivaço e habituado às manigâncias dos utentes dos Serviços Municipalizados de Almada, o cunhado fê-lo descer à terra e explicou-lhe como eram as coisas:
- Ó Simões, pá: não sejas parvo. Pensas que a Companhia se Seguros não sabe fazer contas, pá?
Para já, gastas alguns 50 contos com o tribunal. Depois, o advogado leva-te alguns 100 ou 150 contos. Depois, tens de arranjar testemunhas que o carro vale mais do que a avaliação que te fizeram. Talvez pagar a um perito. Quem é que tu arranjas? E depois, pá, só daqui a 4 ou 5 anos é que tens o assunto resolvido. Desenrasca mas é os 200 contos que faltam, e manda arranjar a porcaria do carro por tua conta!
- Mas eu não tive culpa nenhuma no acidente, caraças!
- Pois não, pá. E o que é que isso interessa?...



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