quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

 

O Divórcio Amigável


De facto as coisas já não andavam bem há bastante tempo.
Por isso, não foi surpresa para a Isabel quando o Carlos nesse dia finalmente a confrontou com a inevitabilidade do divórcio. Ambos bem sabiam que eram os miúdos, de 8 e 10 anos, que ainda os aguentavam juntos.
Mas já não dava.
Ela até já andava desconfiada que havia «mouro na costa» e que havia mesmo qualquer coisa entre o marido e aquela colega lá da fábrica. Mas o que é que isso interessava agora?

Nessa noite ela já dormiu no quarto das crianças.

Teriam que ir a um advogado, talvez fosse melhor. Mas o Carlos era uma pessoa muito mais prática:
- Um advogado? Estás maluca? Leva-nos couro e cabelo pela porcaria do divórcio. O filho do Silva, que está a estudar direito, disse-me que não é obrigatório advogado e que podemos tratar de tudo na Conservatória do Registo Civil sem gastarmos nada. Não é um divórcio amigável?

De facto, na Conservatória uma moça espectacular, uma daquelas funcionárias que já não se usa, explicou-lhes tim-tim por tim-tim o que tinham de fazer. Até lhes deu umas fotocópias com as minutas dos papéis que tinham de assinar e entregar lá depois.
Prepararam tudo em casa: ele escreveu tudo como estava nas fotocópias, numa letra muito redonda e certinha. E lá foi entregar os papéis à Conservatória. Tudo pronto!
Advogados para quê? Isso é que era bom! Não tinha ficado tudo combinado e muito bem escrito?

Os miúdos ficavam com a mãe. O Carlos, que sempre foi um pai generoso aprontou-se logo: como ganhava 520 contos e a Isabel ganhava só 120, ficava a dar 100 contos por mês para as crianças.
Mas o melhor era escrever nos papéis que dava 20 a cada um, porque «há viveres e há morreres» e sempre que pudesse até dava mais, que o que queria era o bem dos filhos. E, como é claro, ficava com os miúdos aos fins de semana e ela nos outro dias todos.
Era justo, concordou a Isabel. Qual era o problema? Depois logo se via. O divórcio não era amigável? Sempre tinha sido o Carlos a tratar das papeladas, que ela não tinha jeito nenhum para aquilo. Eram pessoas civilizadas. Haviam de se entender.

De seguida, combinaram que a casa, que tinham comprado com um empréstimo à Caixa, ficava para o Carlos, que depois dava metade do valor à Isabel. Depois ela pegava no dinheiro e dava entrada para outra casa. Os pais haviam de a ajudar. Até lá, ficavam os dois a morar na casa, que ela dormia no quarto dos miúdos.
Por isso, no papel que tinha escrito «acordo sobre o destino da casa de morada de família» escreveram que a casa ficava para o Carlos.

Depois, no papel que dizia «relação dos bens comuns do casal e respectivos valores» seguiram o conselho da funcionária e escreveram que tinham a casa e mais nada, que não era preciso mais burocracias.
Finalmente, escreveram no último papel que não queriam nada um do outro depois do divórcio. Nada de pensões: cada um ia à sua vida.

Quando receberam o aviso da Conservatória, lá foram. Com o coração apertado, mas ambos resignados: aquele era o primeiro dia do resto das suas vidas.
A Conservadora, também muito simpática e compreensiva, ainda lhes perguntou se não se queriam reconciliar. Mas não. Estava tudo decidido.
Perguntou-lhes então se confirmavam tudo o que estava na papelada. Sim, claro que confirmavam.
Assinaram mais um papel e já estava! Nem tinham passado cinco minutos. Tudo pronto.
Só faltava tratar dos bilhetes de identidade novos.
E lá foram eles para casa.

Mas não é que foi mesmo no Natal que as coisas foram correr mal?

Ela tinha pensado passar o Natal com os miúdos na casa dos pais. Foi comprar umas prendas de última hora e quando chegou a casa, mal pôs a chave à porta, o seu coração deu um salto:
A chave não servia!!!

Tocou à campainha. Ele entreabriu a porta: sim, tinha mudado a fechadura.
Ela nem acreditava no que se estava a passar à sua frente:
- Desculpa lá Isabel, mas é assim: o Natal é a um Sábado e está escrito que os miúdos ao fim de semana ficam comigo. Por isso vão passar o Natal aqui em casa comigo e com a Sofia, a minha colega lá da fábrica. Tu tens que ir para casa dos teus pais.
- Mas a casa não é dos dois? Eu tenho tanto direito à casa como tu!
- Não, não, pá! O que está escrito é que eu é que fico com o direito a morar na casa até se decidir a questão da partilha dos bens. Tu não tens direito nenhum à casa. É isso que quer dizer o acordo. E se chateias muito, chamo a polícia, que eu tenho aqui o papel da Conservatória que diz isso tudo. Foi o papel que tu assinaste!
- Mas não foi isso que a gente combinou! E ainda por cima só depositaste 40 contos para os miúdos em vez dos 100 que te comprometeste. Só com esse dinheiro não os consigo sustentar! O que é que eu vou fazer da minha vida?
- Dos 100 que me comprometi? Tu estás é mas é maluca! Não está escrito que eu tenho de dar 20 contos por mês para cada miúdo? Foi o que eu depositei! O que é que tu queres mais? Na segunda-feira vens cá buscar os miúdos, se quiseres, claro, e podes levá-los para casa dos teus pais. Se não quiseres, eles ficam comigo, que eu não me importo. Agora estamos divorciados, cada um trata de si. Vá, pira-te!!!

Foi o pior Natal da sua vida. O primeiro sem os miúdos.

Logo na segunda-feira foi a um advogado.
- Mas não foi isso que a senhora assinou? Imagina a trabalheira que dá impugnar isso tudo em Tribunal, se é que é ainda possível? E o tempo que vai demorar? E o dinheiro que vai custar? Porque carga de água assinou isso?
- Mas eu fiz tudo como aquela senhora simpática da Conservatória nos ensinou!!! Ela não é funcionária pública? Não está lá para ajudar as pessoas, para as ensinar a fazer os divórcios? E não é responsável? Eu fiz tudo direitinho como ela disse... E agora?...



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