segunda-feira, 28 de março de 2005

 

O Estagiário


Nem os velhos e sombrios corredores do Tribunal da Boa-Hora afastavam o calor abrasador daquela tarde de fim de Setembro.
Subiu lentamente as escadarias de mármore, gastas de séculos, e admirou os claustros que abrigavam na sua sombra as dezenas de pessoas que pareciam silenciosamente unidas pelo destino comum de estarem num tribunal criminal.

Foram decerto a gravata, a pequena pasta debaixo do braço e aquele ar de juvenil falsa segurança que o denunciaram. O funcionário aproximou-se dele e perguntou-lhe, apressado:
- O Dr. é estagiário?
- Sou.
- Quer fazer uma oficiosa?
Sem hesitar e tentando demonstrar calma e segurança na resposta, respondeu:
- Claro, vamos a isso.
Seguiu o funcionário pelo labirinto dos corredores até a uma pequena sala de audiências, já cheia de gente.

O peso da sala abateu-se sobre ele. Já tinha assistido a muitos julgamentos; sei lá, a alguns oito ou nove. Mas aquela era a sua primeira intervenção num processo, a sua primeira “oficiosa”.
Tentou disfarçar as pernas que lhe tremiam, a boca seca e aquele súbito e inesperado frio que o invadiu naquela tarde de Verão.
Olhou de soslaio para a arguida que ia defender. Ar modesto. Não mais de 18 ou 19 anos.
- Qual é a acusação? Posso consultar o processo? – perguntou ao funcionário.
Entregando-lhe um pequeno processo de capa cor-de-rosa, o funcionário segredou-lhe:
- A arguida está acusada de homicídio. Teve um bebé sozinha e matou-o à nascença. Embrulhou-o num saco plástico e deitou-o para um contentor de lixo.
Ainda quis ter a iniciativa de falar com a arguida, procurar uma explicação para a sua atitude, qualquer coisa que o pudesse ajudar na sua defesa.
Mas era tarde demais: de súbito, os três juizes e o procurador do Ministério Público entraram de rompante na sala.
Toda a gente se levantou respeitosamente.
O funcionário arrancou-lhe autenticamente o processo das mãos e pô-lo em cima da bancada dos juizes.
Muito direito, sentou-se à sua secretária e chegou a pequena pasta para a sua frente.
Sem perceber sequer que a inutilidade daquela pasta, vazia se não fossem alguns papéis em branco, não era muito diferente da sua.
Começou o julgamento!
Foi lida a acusação.
Foram feitas perguntas e a arguida confirmou tudo o que tinha sido lido, sem nada mais adiantar.

A pergunta do juiz sobressaltou-o:
- O Sr. Dr. deseja alguma coisa da arguida?
Se desejava alguma coisa? Claro que desejava!
Queria parar o julgamento. Já!
Queria consultar o processo. Queria preparar a defesa. Queria falar com a arguida com tempo. Queria perguntar-lhe porquê. O que tinha acontecido. O que tinha motivado aquele gesto tão cruel e desesperado.
Mas era a sua primeira oficiosa. Como é que aquilo se fazia? Como ia ousar sequer fazer uma coisa daquelas? Será que o podia fazer? Onde ia a porcaria de um estagiário arranjar coragem para interromper, para perturbar daquela maneira o julgamento de um Colectivo no Tribunal da Boa-Hora?
Mas tinha que ser! Tinha que agir de acordo com a sua consciência. Que raio de justiça era aquela? Com que farsa estava a colaborar? O que estava ali a fazer, afinal? Ofício de corpo presente?
Quando um dia sonhou ser advogado, não era certamente naquela palhaçada em que estava a pensar.

Mas, como se fosse outra pessoa a falar, quase com raiva, ouviu-se a si próprio a dizer cobardemente:
- Não quero nada, Sr. Dr. Juiz.
E o julgamento prosseguiu, com calma naturalidade:
- O Sr. Dr. tem a palavra para alegações.
Soergueu-se ligeiramente na cadeira e balbuciou:
- Peço justiça!
E tornou a sentar-se. Envergonhado consigo próprio.

Uma semana depois, a sentença: cinco anos de prisão!

No final dessa tarde, desabafou com o seu velho patrono.
Não lhe contou o que tinha pensado, o que tinha sentido. Tinha vergonha. Falou-lhe só do drama do caso e da severidade pena aplicada.
- Como organizou a defesa? – perguntou-lhe o patrono – Tentou ao menos justificar os motivos da actuação da arguida? Era mãe solteira? Sabia quem era o pai? Será que ela teve medo da reacção da família? Da reacção da comunidade onde vive? Tinha meios para se sustentar a si e à criança? Com uma justificação razoável, com uma explicação plausível, poderia talvez ter-se conseguido uma pena suspensa. Como organizou então a defesa?

O seu silêncio foi esclarecedor. Sentiu-se corar violentamente.
Mas a calma experiência do patrono sossegou-o:
- Deixe estar. Para a próxima já sabe...



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