segunda-feira, 14 de março de 2005

 

Uma história triste


Leio no «Afixe» uma história absolutamente perturbadora, excelentemente escrita pela Emiéle, que não resisto a transcrever na íntegra:

«Uma história triste»
«O ano passado conheci uma menina. Vamos chamar-lhe Mariana.
Nessa altura a Mariana andava a dormir mal. Tinha pesadelos, insónias, de noite queria ir para a cama dos pais apesar dos seus 8 anos.
Vim a saber que o casal a quem ela chamava pai e mãe, não eram os seus pais verdadeiros mas os únicos que ela conhecia e de que se lembrava. Ela e um irmão um ano mais novo, tinham sido abandonados há mais de 6 anos, tendo a Mariana passado os seus primeiros 3 anos de vida num “lar” do qual não conservava nenhuma recordação.
Quando tinha aproximadamente 3 anos de idade, estes “pais” tinham ficado sensibilizados com este abandono e, de acordo com a instituição trouxeram-na para a sua casa, onde lhe deram o mimo e carinho de uma filha.
Tanto quanto a sua memória podia recuar, a Mariana só se lembrava da mãe a dar-lhe banho, de ir passear com os pais, de a aconchegarem com o beijinho da noite, das comidas de que mais gostava, de a irem levar e trazer á escola. Manteve contacto com o irmão, porque ele tinha sido recebido por outra família, mas sempre com o cuidado de se reuniram muitas vezes, faziam as festas em conjunto, davam passeios juntos e eles sabiam que eram irmãos apesar de “terem pais” diferentes.
Um dia a mãe apareceu.
Receberam uma comunicação da instituição para levar lá a Mariana. A nossa menina, para quem os pais eram os que sempre tinha conhecido, é confrontada com a presença de uma mulher, que ela sabia existir, mas que nunca tinha visto e por quem não sentiu a menor simpatia.
A rejeição foi enorme e aí começaram os pesadelos e o mau dormir. Quando falei com ela, vi-a apavorada, nem queria imaginar que pudesse perder os seus pais! E o mesmo se passou com o irmão.
Entretanto o processo foi decorrendo, ela e o irmão foram várias vezes levados à força a encontros com a mãe, de onde voltavam perturbadíssimos e em pânico. As suas famílias viam-nos sofrer e sofriam com eles.
Há poucos dias recebi um telefonema da mãe da Mariana. Disse-me “Sucedeu o pior!” Contou-me, em lágrimas, que dois dias antes tinham ido ao tribunal, eles e o outro casal com o menino. A Mariana, que estava com gripe, tinha ficado de cama. Alguém deu a mão ao irmão da Mariana, saindo com ele por uma porta. Ouviram-no chorar, mas quando os pais quiseram acudir foi-lhes barrada a passagem.
O juiz perguntou-lhes secamente e de um modo cortante “Sabem que esta menina tem mãe ?!” Ao tentarem, em pânico, gaguejar uma resposta ouviram: “Se não a apresentarem amanhã podem ser acusados de rapto”.
Portanto, no dia seguinte, aquela Mariana que conheci radiosa apesar de assustada na altura, a menina cuja memória mais remota era de uma vida com esta família, pais, avós, tios, primos, de uma penada viu a sua vida modificada radicalmente e perdeu completamente a sua família. Uma morte colectiva.
A violência deste acto, onde é dito que nem sequer se pode dar o contacto destas crianças porque é secreto, deixa-me pensar que também há histórias de Kafka para a infância.
Só imagino como vai dormir agora a Mariana, numa cama estranha, ao pé de pessoas estranhas, num ambiente estranho, a frequentar uma escola estranha, com colegas e professores estranhos.
Neste momento nem estou a pensar no sofrimento dos adultos a fazerem este luto doloroso, penso apenas no terror desta menina e como é possível situações destas resolverem-se apenas pela frieza das leis.
Julgava que não era possível.
Foi».

Não sei como estará agora a Mariana.
Não consigo imaginar o seu sofrimento.
Nem sequer posso imaginar como passa os seus dias.
Que pensamentos a atormentam.
Que pesadelos a assaltam à noite, quando as luzes se apagam.

Mas tenho a certeza absoluta que o juiz que tomou esta decisão, decerto no melhor interessa da Mariana, está de consciência perfeitamente tranquila.
E que dorme bem à noite e tudo...



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