sexta-feira, 16 de setembro de 2005

 

Um Mundo de Faz-de-Conta



Depois de verem frustrada a manifestação que vinham planeando, leio que os militares se preparam agora para no próximo dia 21 de Setembro organizarem uma outra manifestação onde, desta vez, estarão presentes... as suas mulheres.

Se do ponto de vista mediático esta manifestação das mulheres dos militares é, sem sombra de dúvida, uma ideia brilhante, ela revela, contudo, o mais elementar «chico-espertismo» lusitano com o seu recurso ao já tradicional «faz-de-conta».

Bem típico também da instituição militar!

Que fique para já bem claro que nada me move contra os militares!
Bastaria recordar o 25 de Abril e quem nos proporcionou a libertação das múmias que até então nos governavam.
Contudo, que também fique bem claro que os militares que prefiro associar ao 25 de Abril são mais representados por Salgueiro Maia que por Otelo.

Mas ao ouvir as reivindicações sindicais dos militares, não posso deixar de recordar o meu contacto directo com essa gente, que durou 16 meses, e que marcou em mim uma imagem de toda a instituição militar que ainda hoje perdura.
Talvez o exemplo mais paradigmático do que quero dizer tenha a ver com o seguinte:

Um belo dia, vai já para um quarto de século, enfiaram-me um capacete branco na cabeça e informaram-me que tinha passado a ser um «Polícia do Exército».
Entre os fretes de que me encarregaram, tinha de fazer umas «rondas» a locais considerados militarmente sensíveis em Coimbra.
Um desses locais era o paiol, onde eram armazenadas armas e munições, e que era guardado 24 horas por dia por um único sentinela, cuja vigilância me competia verificar.
A ronda fazia-se tradicionalmente de um modo que não me passou pela cabeça deixar de adoptar:

Lá pela 1 ou 2 da manhã, depois de termos tomado uns copos numa tasca que proporcionava nas traseiras um esconderijo eficaz para o jeep, lá íamos ao paiol fazer a ronda.
Obviamente que não íamos mais do que fazer de conta que estávamos a desempenhar uma delicada missão militar, pois todos bem sabíamos o que nos esperava.
Parávamos o jeep a alguma distância, e um dos soldados ia sem fazer barulho roubar a G-3 ao sentinela, que estava invariavelmente a dormir.
Pouco depois, chegávamos de jeep. O sentinela acordava com o barulho, e fazia de conta que estava acordado e perfeitamente vigilante no seu posto.
Claro que dava logo pela falta da G-3, e bem sabia que tínhamos sido nós a tirar-lha, mas o seu papel era fazer de conta que não sabia.
Então, eu fazia de conta que também não sabia de nada, fazia de conta que não sabia que ele bem sabia o que se passava, e perguntava-lhe pela G-3.
E ele então fazia de conta que estava surpreendido com o desaparecimento da arma, e fazia de conta que a procurava por toda a guarita.
E eu fazia de conta que esperava.
Passados uns minutos, eu fazia de conta que participava dele por ter deixado roubar a G-3.
Ele, obviamente, fazia de conta que estava preocupado.
Depois de passar o tempo tradicionalmente recomendado, eu lá lhe aparecia com a G-3 e ele fazia de conta que estava muito surpreendido e agradecido pelo seu súbito aparecimento.
Depois, eu pedia-lhe a identificação militar, e fazia de conta que ia participar dele por estar a dormir no seu posto de sentinela, ainda por cima num local tão sensível como o paiol.
Claro que, como lhe competia, o soldado começava imediatamente a fazer de conta que chorava, pois bem sabia que à minha participação correspondia a pena de 6 anos de presídio militar.
Eu fazia de conta que era um Polícia do Exército inflexível, e dizia-lhe que não restava outra alternativa, e tomava nota da sua identificação num papel.
Depois disto, íamos embora, deixando-o a fazer de conta que estava preocupado.
Como é óbvio, mal chegava ao jeep eu deitava fora a porcaria do papel, pois não me passava pela cabeça mandar o rapaz para presídio militar nenhum.
O sentinela ficava então a fazer de conta que «tinha aprendido a lição» e que passava a estar vigilante no seu posto, embora bem soubesse que podia dormir descansado o resto da noite, pois mais ninguém o iria chatear até de manhã.
E no dia seguinte, e no outro depois, assim numa espécie de tradição militar onde todos fazem de conta, tudo se repetia com mais um sentinela.

É esta a ideia que ainda hoje tenho da instituição militar: um gigantesco «faz-de-conta» à custa do Orçamento de Estado!

Sinceramente não consigo entender onde raio se baseiam os militares para reivindicar regalias que os outros funcionários públicos não têm.

Salvaguardadas as óbvias e costumeiras excepções, ainda hoje me perdura a ideia de que os militares são um tipo de funcionários públicos que não sabem fazer nada.
E que, sem fazerem nada porque também nada têm para fazer, vão arrastando a farda pelos quartéis, conscientes da sua absoluta inutilidade em caso de guerra, ocasionalmente trocando respeitosas continências entre eles, endividando-se mutuamente em jogos de cartas onde todos fazem batota, inventando intrigas de que resultam participações aos seus superiores, mas que não levam a nada, enquanto esperam pacientemente que cheguem as horas das refeições.
Claro que, como é óbvio, e ao contrário do que acontece com os restantes funcionários públicos, as refeições são integralmente pagas pelo Orçamento de Estado, nunca percebi bem porquê.
Até porque tal como os restantes funcionários, e com excepção de um «serviço» lá de mês a mês, todos trabalham 35 horas por semana.

De vez em quando, os militares resolvem visitar-se mutuamente nos quartéis uns dos outros, normalmente para variar de ementa, com as deslocações generosamente subsidiadas por um mecanismo a que chamam «ajudas de custo», embora sinceramente me pareça que as deslocações não lhes «custam» nada a fazer e até contribuem para amenizar o mais que certo tédio de que as suas vidas de ócio castrense se devem revestir.

É decerto deste ócio que nascerá a filosofia das reivindicações que os nossos militares têm vindo a apresentar ao Governo.

E é decerto da consciencialização das suas vidas de «faz-de-conta» que nascerão as suas manifestações sindicais. Feitas não por si, mas por interpostas pessoas que vão fazer de conta que são eles: desta vez as suas mulheres.



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