segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

 

O dia em que Salazar caiu da cadeira



No dia 3 de Agosto de 1968 quando passava uns dias de féria no forte de Santo António no Estoril, António de Oliveira Salazar, o Primeiro-ministro de Portugal, ou o «Presidente do Conselho», como então se usava chamar, caiu de uma cadeira e bateu com a cabeça no chão.

A sua forte personalidade, o seu carisma e influência política e social eram de tal ordem que, apesar de Salazar ter ficado com as capacidades mentais muito diminuídas em consequência do hematoma cerebral que sofreu na queda, o próprio Presidente da República, Américo Tomás, hesitou vários dias antes de nomear Marcelo Caetano como seu sucessor.

Salazar acaba por morrer no dia 27 de Julho de 1970 em consequência desta queda.
Não sem antes os ministros de Portugal se terem prestado à ridícula pantomina de fingirem que Salazar ainda governava. Apresentam-se-lhe a despacho no Hospital onde está internado, e fazem-no proferir ridículas decisões a fingir, fazendo-lhe pateticamente crer que ainda está à frente do Governo.

Mas que Portugal nos entregou Salazar no dia em que caiu da cadeira, e após ter sido Primeiro-ministro durante 36 anos?
Personalidade controversa, não faltam a Salazar incondicionais apoiantes, que lhe imputam invariavelmente as mesmas qualidades: uma honestidade a toda a prova, o equilíbrio financeiro do país, a sua estabilidade política depois dos primeiros agitados anos da República, uma das maiores reservas de ouro do mundo, um escudo forte, ter mantido Portugal fora da 2ª Guerra Mundial e, muito principalmente, a autoridade férrea e incondicional com que governou Portugal.

É decerto nestas prestimosas qualidades que pensam aqueles que «votam» em Salazar no estapafúrdio programa televisivo (em que me recuso a participar) que visa eleger «o melhor português».
Não sei que português sairá «vencedor» e que militância telefónica em chamadas de valor acrescentado pretenderá impor-nos como o «melhor português».
Mas não posso deixar de surpreender-me com quem vota em Salazar, afinal num exercício de uma liberdade cívica e política absolutamente normais e corriqueiras, mas que ele próprio não admitia, e que perseguia com a tal e tão elogiada «autoridade férrea».

De facto, não consigo deixar de me surpreender com a incomensurável tacanhez de espírito de quem tem coragem e a desfaçatez de votar em Salazar como o «melhor português», passando como cão por vinha vindimada e ignorando qual o verdadeiro Portugal que aquele ditador estúpido, tacanho e sanguinário nos legou a 3 de Agosto de 1968, o dia em que caiu da cadeira.
Embora bem pior que essa tacanhez de espírito seja a imbecilidade de quem ousa proferir a frase: «então e agora as coisas estão bem?».

A frase que talvez melhor defina Salazar foi por ele próprio proferida:
«Devo à Divina Providência a graça de ser pobre».

Pois foi nesta «graça de ser pobre» que Salazar transformou Portugal, decerto convencido que essa era uma sagrada tarefa que lhe tinha sido encomendada pela «Divina Providência».

No dia em que caiu da cadeira, Salazar deixou-nos um Portugal que tinha uma taxa de mortalidade infantil semelhante à do Alto Volta e uma taxa de analfabetismo parecida com a da Costa do Marfim ou a do Uganda.

Deixou-nos um país sem ciência, sem cultura e sem civilização!

Uma legião de censores de lápis azul procuravam imbecilmente descobrir nas entrelinhas dos livros e dos jornais aquilo que era «proibido dizer».
Um exército de polícias políticos encarregavam-se de prender, torturar e matar quem ousava opor-se ao regime, e os tribunais plenários da complacência do poder judicial tratavam de «legalizar» as prisões, os desterros e os campos de concentração.

Nem dos próprios portugueses Salazar tinha grande opinião e dizia claramente:
«O grau das liberdades públicas efectivas depende da capacidade dos cidadãos, não da concessão magnânima do Estado».

Mas ao mesmo tempo, não hesitava em hostilizar as elites culturais e científicas do país ao mínimo sinal de oposição às suas ideias. Quantos professores universitários foram proibidos de ensinar, quantos cientistas foram «aconselhados» a emigrar, só porque as suas ideias não se encaixavam nos cânones oficiais do regime.

Um arremedo de eleições fingidas pretendiam dar uma espécie de legalidade ao regime. Mas bastava alguém ousar candidatar-se e dizer de Salazar «obviamente, demito-o», para ser impiedosamente assassinado.

Católico empedernido e fanático, que nunca conseguiu deixar de ser um seminarista tacanho e de vistas curtas, Salazar submeteu Portugal a Concordatas que proibiam aos portugueses a dissolução dos casamentos celebrados catolicamente ao mesmo tempo que conferiam à Igreja Católica uma notável influência na educação e na sociedade civil e política. Com os resultados que se conhecem.

Salazar era um saloio ridículo e boçal, cujo horizontes nunca verdadeiramente passaram dos campos lavrados de Santa Comba. E, como bom católico, era também um misógino empedernido, que dizia:
«Ensinai aos vossos filhos o trabalho, ensinai às vossas filhas a modéstia, ensinai a todos a virtude da economia. E se não poderdes fazer deles santos, fazei ao menos deles cristãos».

Impondo um regime autoritário de direita, Salazar, por muito paradoxal que isso pareça, e por muita fama de entendedor de finanças que tivesse, nem sequer compreendeu muito bem a economia de mercado. Implementou em Portugal um regime corporativista retrógrado e proteccionista e, sempre a bem das finanças, mandou congelar as rendas das casas, uma medida com consequências bem sérias que ainda hoje, meio século depois, se fazem sentir.

Salazar nem sequer ia ao cinema: enquanto Portugal morria silenciosamente de fome ou emigrava para sobreviver, era a sua fiel Maria que lhe contava as histórias dos filmes, sentados de mantas nos joelhos nas frias e longas noites de Inverno.
Diz-se que apreciava particularmente que a Maria lhe contasse muitas vezes o «Música no Coração».

«Orgulhosamente só», Salazar nem sequer se dava ao trabalho de ver o que se passava nem no país nem no mundo à sua volta.
Por isso, não soube perceber o que o mundo tinha mudado, principalmente depois da 2ª Guerra Mundial, e não soube descolonizar a tempo de o fazer pacificamente, antes preferindo manter uma guerra colonial estúpida e obviamente inconsequente porque impossível de vencer politicamente, com o óbvio custo de milhares e milhares de mortos.

Nem sequer soube encontrar uma solução pacífica e honrosa para as colónias da Índia, recusando mesmo cegamente a solução de uma independência calculada, que ainda hoje poderia, talvez, perdurar.
Depois da invasão indiana em 1961, mandou estupidamente as tropas portuguesas resistirem até ao último homem, mas em vez de lhes mandar armas e munições, mandou-lhes caixotes com... chouriços!
Mas isso não o impediu de humilhar e perseguir esses militares quando estes regressaram a Portugal.

Como não teve qualquer pejo em humilhar e perseguir a coragem de Aristides Sousa Mendes, que salvou a vida de milhares de judeus que fugiam à fúria assassina nazi.
Germanófilo convicto, Salazar admirava Franco e disfarçava mal o seu apoio a Hitler e Mussolini, que idolatrava incondicionalmente e de quem mantinha retratos sobre a sua secretária de trabalho.
Soube gerir admiravelmente como obra sua a neutralidade de Portugal na 2º Guerra, fazendo crer que isso se devia mais às suas notáveis capacidades diplomáticas e influência no xadrez político mundial, qual Richelieu de trazer por casa, do que à irrelevância do nosso país no esforço de guerra europeu, com excepção do precioso volfrâmio, que exportava, como é bom de ver, para a Alemanha.
Por isso, escondeu quer os planos de Hitler para a invasão de Portugal (a célebre Operação Leão Marinho) ou o ultimato dos americanos para a utilização dos Açores como base estratégica, que até à última procurou evitar conceder-lhes.

Depois da 2ª Guerra Mundial, e enquanto aqui mesmo ao lado a Espanha, devastada pela Guerra Civil, se ia transformando num dos países mais industrializados e desenvolvidos do mundo que é hoje, em Portugal Salazar defendia a política do «condicionamento industrial» e instituía a «licença de isqueiro» ou proibia a venda de Coca-cola para proteger as medíocres indústrias concorrentes de famílias cuidadosamente protegidas do regime, que enriqueciam com a exploração despudorada de mão de obra barata e desqualificada.

No fim, Salazar transformou Portugal num «país de província» e à sua própria imagem: com ouro debaixo do colchão, mas um país atrasado, seminarista, tacanho, estúpido e de tamancos.

Mas, apesar de tudo, um homem e um governante em quem tantas pessoas não hesitam em votar como «o melhor português».
Decerto pessoas como ele: atrasadas, seminaristas, tacanhas, estúpidas e de tamancos!




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