domingo, 2 de outubro de 2011

 

Uma questão de consciência



O n.º 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa estabelece claramente como um dos direitos fundamentais dos cidadãos que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação».

E, no entanto, a Assembleia da República acaba de aprovar a criminalização do chamado “enriquecimento ilícito”, estabelecendo uma inversão do ónus da prova de demonstração da proveniência lícita de sinais ou vestígios de enriquecimento patrimonial, prevendo uma nova tipificação criminal ainda por cima com pérolas de uma brilhante ciência jurídica como seja o «incremento significativo do património ou das despesas realizadas por um funcionário que não possam razoavelmente por ele ser justificados»!

Mas, o que é chocante é que a maioria dos deputados e, com excepção do P.S., em representação de TODOS OS RESTANTES partidos com assento na Assembleia da República, que bem conhecem o princípio e o direito fundamental da presunção da inocência, que são os representantes do Poder Legislativo da República e que, por isso, deveriam ser o repositório básico da Democracia portuguesa, tenham embarcado conscientemente neste populismo bacoco e barato, para fazer passar uma mensagem de justicialismo a uma populaça sedenta de linchamentos na praça pública não se sabe bem de quem.

Como bem diz Vital Moreira, «um dos princípios básicos da “constituição penal” moderna e do Estado de direito é o de que a responsabilidade penal supõe a acusação e a prova de um ilícito penal (e não uma presunção). Para efeitos penais, não há “enriquecimento ilícito” sem se provar a sua origem ilícita.
«Ora as formas típicas de enriquecimento ilícito (suborno, tráfico de influências, etc.) já hoje são crimes. O que se pretende agora é considerar como novo tipo de crime, independentemente de prova, todos os acréscimos patrimoniais não justificados.
«Independentemente da questão da constitucionalidade, não é de aplaudir esta iniciativa. No tempo da Inquisição é que os acusados tinham de provar a sua inocência, dispensando os acusadores de provar o crime».

Até Pacheco Pereira, que nem sequer é jurista, não embarca da hipocrisia populista do seu próprio partido e reconhece que «é verdade que o princípio do ónus da prova, que obriga quem acusa a provar a veracidade da acusação e desobriga o acusado de provar que é inocente, pode ajudar a proteger muitos culpados em crimes deste tipo.
«Mas é assim com muitos dos direitos fundamentais que nos defendem da prepotência do poder e é mais importante que eles permaneçam intocados, mesmo que tornem mais difícil combater males profundos como a corrupção.
«Na verdade é mais fácil linchar um ladrão apanhado em acto do que levá-lo a julgamento ou acusar alguém de pedofilia (a acusação perfeita nos dias de hoje porque nunca mais se apaga) do que o provar».

Mas o meu ponto é este:
Como qualquer outro princípio constitucional, como qualquer outro direito fundamental, derrogar o princípio da presunção da inocência, mais do que abrir caminho à inversão do ónus da prova para todos os restantes crimes do Código Penal (não são os crimes de homicídio, sequestro, violência doméstica, burla, roubo… mais “graves” do que o enriquecimento ilícito?) é antes de mais uma questão de consciência.

O que eu não entendo é que noções de ética e qual a medida da consciência que têm não só os que defendem desta maneira grosseira e indecorosa o espezinhar de um princípio constitucional fundamental, que significa a própria definição da Democracia, como também os que suportam, defendem ou se identificam com um partido político que tem tal barbaridade no seu programa ou na sua prática política.



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